quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A LENDA DO REI RAMIRO (1)


Quando contemplo os nossos rios, e quero referir-me àqueles que ficam aqui ao Norte do Douro até ao Minho, nas margens e nas praias marítimas fico a pensar nos ricos romances históricos, ou lendários que por aí se foram desenvolvendo e por aí estão perdidos e ocultos pelo célere decorrer dos séculos.
Hoje, procuramos compreender como eram penosas as deslocações por terra e então, como alternativa, lá idealizamos o barquito à vela, que com bom tempo e vento de feição ia percorrendo a costa transportando povo em penosas deslocações; temerárias também pela imprevisível pirataria que a frequentava.
Os normandos eram temíveis já antes da chegada dos mouros, depois os sarracenos vingaram-se depois de terem sido expulsos e passaram a assolar toda a orla marítima e a pente fino.
Um desses romances históricos, de que dificilmente nos podemos alhear pelo seu sabor a lenda, entreabre-se quando enternecidamente contemplamos os rios e estuários, as praias e as belas enseadas e encantadoras povoações piscatórias, deste vetusto "Entre Douro e Minho".

É o romance do Rei Ramiro; a famosa lenda de que hoje não se sabe bem quem teria sido o protagonista, se D. Ramiro I, se o segundo (2).
Nesse tempo esta terra do Entre-Douro e Minho, era percorrida com frequência, e foi assim durante muitos anos, pelas hostes guerreiras quer de cristãos galegos, que aqui vinham saquear os mouros para se refugiar de novo além Minho, quer dos mouros que por aqui corriam as álgaras para se refugiarem em segurança ao Sul do grande rio Douro.

Conta a lenda que D. Ramiro ou Ranimiro, a pesar de "casado e pai de filhos" se teria enamorado da irmã do chefe mouro Albuazar (3) senhor de Gaya. A negativa do irmão da "pretendida" levou D. Ramiro a raptá-la levando-a para «Minhor» (4).
Como represália "Alboazar" foi a Minhor, raptou a mulher de D. Ramiro trazendo-a para Gaia".
O Rei andava em operações lá para as Astúrias e ao saber do sucedido chamo seu filho Ordonho e os vassalos e, navegando por aí abaixo com cinco «galés», "vieram surgir" a "Sanhoanne de Furada" (5) junto á foz do Douro.
Aí Rei Ramiro escondeu os seus pelas florestas da margem do Rio e foi postar-se próximo de uma fonte nas proximidades do castelo.
Da manhã, enquanto o casteleiro andava à caça, a "covilheira sergente" da rainha raptada, "Perona", indo à água, à fonte, encontrou-o ali disfarçado de "mouro doente e lazarado" a quem serviu água, pelo "antre" (6) onde o mouro discretamente lançou, no vaso um anel, sem que a covilheira notasse.
Quando a rainha ao ser servida com a água lhe caiu o anel nas mãos, logo o "mouro" foi mandado chamar.
«- Rei Ramiro, quem te aduse aqui? - cá o teu amor;- e ella lhe dice que vinha morrer, e elle respondeu, ca pequena maravilha.»
D. Ramiro foi logo escondido num armário porque Alboazar acabava de chegar; dali ouvindo a conversa entre o mouro e a rainha, responde: «de máa ventura he ho homem que sse fia per nenhuma molher»
Depois do jantar a Rainha perguntou a Alboazar.
- Se tu aqui tivesses Rei Ramiro, que lhe farias?
- O que elle a mi faria! Mata-lo!»
Trazido o prisioneiro Abencadão logo perguntou.
«- És tu o Rei Ramiro ... - eu sou ... - a que vieste aqui? ...»
«- Vim ver a minha mulher que me filhaste a torto. cá tu havias comigo trégoas. e nem me catava de ti - vieste a morrer ... se metiveces em Miñor, que morte me darias?»
«- Abrira as portas do meu curral e faria chamar todas as minhas gentes, que viessem ver como morrias e faria-te subir a um padrão, e faria-te tanger o corno, até que te hi sahice o folego» E assim foi feito.
Rei Ramiro subiu ao padrão e tirando da cinta a trompa de corno, tocou com quanta fôrça tinha o sinal previamente combinado a que rapidamente acudiram o filho e os vassalos; entrados no curral do castelo rechaçaram quantos mouros em Gaia havia.
Depois «filhou o Rei Ramiro sa molher e sas donselas», embarcaram e regressaram de rota batida.
já afastados e desembarcando na praia aí descansaram; «D. Ramiro deitou-se no regaço da Rainha, e a Raínha filhouce a chorar e as lágrimas dela caíram a D. Ramiro no rosto acordando-o.»
O rei perguntou-lhe porque chorava ela:
«- Choro por mui bom mouro que mataste - e então o filho ... disse ao padre - não levemos connosco mais o demo !»
«- Mete dôr ! »... e depois disso o monte ali ao lado ficou conhecido por Monte d´ Ór !»
«Então o rey Ramiro filhou uma mó, que trazia na nave, e ligoulha na garganta e ancorouha no mar e dês aquella hora chamarão ´hi Foz d´ Ancora .» 7)
Por instigação do filho Ramiro ordenou que botassem ao mar, «e por este pecado que disse o inffante D. Ordonho contra sua mãe disserom depois as gentes que por esso fora deserdado doos pobos de Castela.»
«De volta a Minhor, D. Ramiro foysse a Leon e fez sas cortes ..., e mostroulhes as maldades da rraínha Alda sa molher e que elle avia por bem de casar com dona Artiga, a irmã do chefe mouro", ... e elles todos a louuvaram e ho ouveram por bem.»
«Deste casamento descenderam os da Maia.»

1) - A lenda do Rei Ramiro descrita nos Livros de Linhagens; Fragmentos II e IV , (ed P.M.A., pág. 180/181 e 274/277) citada por Alberto Sampaio - As Póvoas Marítimas, pág. 141 e seg.)
2) - Outra versão refere "Mier" próximo de Salvatierra.
3) - Alboazar para uns e Abencadão para outros.
4) - As duas versões (cada uma em seu Fragmento) não são coincidentes, nem se sabe hoje se foi passado com D. Ramiro I ou D. Ramiro II; os nomes e as peripécias também não coincidem mas tudo isso adensa o "mistério" e o carácter lendário de história sai por isso mesmo valorizada.
5) - S. João da Aforada, próximo da foz de Rio Douro.
6) - "Antre" - entenda-se "vasilha"
7) - Fiz do Rio Âncora.

m. c. santos leite

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Os “Mendrugos” de S. Francisco



São Francisco estava já no fim de uma vida magra, doente e sofrida quando os Irmãos da Porciúncula lhe prepararam a surpresa de uma homenagem.
Nos últimos tempos, cumprindo imperativos de idade, levantava-se tarde. Certo dia quando, vinha da cela chegou à sala - uma sala grande em terra batida que ele noutros tempos mandara construir - viu admirado uma grande “mesa posta”: rica toalha, baixela do melhor, barro da região e copos de vidro.
Mal sabia que era tudo de empréstimo.
«- Gente rica vem cá almoçar. (Pensara que os Irmãos tinham cedido a sala para servir um almoço. Tomando a escudela e o bordão saiu para dar a habitual volta, como pedinte, pela vizinhança.

Á hora marcada, tanto os Irmãos como os Convidados já ocupavam os seus lugares à mesa. Só Frei Francisco faltava mas o costume, por ele proposto era, que fossem comendo.
Entretanto chegou com a escudela.
A avaliar pelo luxo da mesa e decoração da sala, gente bem importante devia ser.
É gente rica, pensava! E começou de apresentar a escudela a quem estava à mesa.
- Uma esmolinha?
Ao segundo ou terceiro conviva notou que eram rostos conhecidos.
«- Afinal “são pobres”, confirmou e, deixando de pedir, seguiu até ao fundo da sala sentando-se à lareira, a comer os “mendrugos” da escudela. Tinham-lhe dado no peditório, míseras «côdeas de boroa, rapada, bolorenta e dura!»
Tentaram convence-lo a ir para a mesa mas, em vão; depois, em silêncio, Irmãos e Convidados meditavam. Ficaram a meditar e a reparar em São Francisco e nas côdeas de pedinte!

A TV às primeiras horas de hoje falou-nos de novo episódio da emigração clandestina, africana.
Na Grécia um barco que se aproximava com emigrantes, teve problemas junto à Ilha de “Cítara”.
Trezentas e trinta pessoas em perigo entre elas quarenta mulheres e dez crianças que num resgate difícil, e de várias horas, foram recolhidas por um ocasional e milagroso petroleiro.

Nas ilhas gregas os “chifons” continuam a esvoaçar. Cordas lânguidas e os acordes dolentes da cítara continuam a tanger!

São Francisco passou por cá há oitocentos anos e a “Cítara”, que já era velha pelas ilhas gregas, continua a tanger.
- Naufrágios e “mendrugos” sempre haverá! Petroleiros ocasionais é que podem faltar!

Hoje a vida vai difícil e pelo andamento, ninguém pense que está livre de ir para as Ilhas gregas comer “mendrugos” a bordo de algum petroleiro ocasional. Ferrugento!


m.c. santos leite