terça-feira, 24 de dezembro de 2013

... saber viver!


Fazer o elogio da pobreza em dias de hoje é um suicídio... será mesmo demasiado arriscado!
Eu queria apenas falar de uma pobreza voluntária que não fica mal a ninguém... lá se diz que a pobreza dá-a Deus - a quem a quer! A quem a não quer... faz dela, o diabo o que quer!
Mas... sem esquecer quem a sente na pele involuntariamente, pois eu referia-me a pobreza voluntária ou à “Santa Pobreza”... um exercício de vida, regido por equilíbrio e contenção!
Formas de vida que... tomadas, por uns, como desportivismo... são, por outros escravatura.
Conceitos… e, como tal, merecem apreciações diferentes e, pontos de vista irreconciliáveis.

Há dias passando por uma das “grandes superfícies comerciais” vi, dependurados exemplares de bacalhau miúdo. Peixe tão miúdo como já não via depois dos tempos da Segunda Guerra.
Aproveitando o contraste direi que, também antes, nunca vira, exemplares de... bacalhau tão miúdo!
Ainda me fizeram lembrar as sardinhas abertas ao meio, e amarradas num fio, como a roupa, postas a secar pelos pescadores, em Matosinhos... e vai daí que me “apaixonei” por aqueles exemplares, mais miudinhos e levei alguns para casa!

Serviu um bacalhauzinho daqueles para me fazem lembrar de meu pai... que era pobre por vocação... Pobre por querer!
A vida dele, os seus luxos... cisaram-se ao cafézito e ao cigarro, que nunca conseguiu abandonar, um pouco de conversa com alguém que soubesse conversar.
No Inverno sobretudo pelas costas, de socos e meias artesanais grossas, para ter sempre os pés quentes, cigarro entre os dedos – fazia-me lembrar a esfinge da marca “do vinho fino”, "o homem do sobretudo". Imóvel, quando o coração já não dava para mais, mas sempre atento e oportuno... via tudo à sua volta e tudo meditava e ajuizava com bom senso.
O verdadeiro e genuíno prazer que extraía da vida era...saber o que dizia e dizê-lo, por vezes de forma ácida e poucas palavras. Gostava de ouvir muito e falar pouco... de viver em paz!!!

Ao pequeno almôço apreciava uma barbatana do tal bacalhau miúdo. Era o que havia!
- Bacalhau assado na brasa, batata cozida, azeite, cebola, alho... é o prato mais fidalgo que já vi por esta terra!
Queira dizer: Havia muito que tirar de entre as espinhas, muito paladar e... pouco alimento! Soube conservar sua linha... toda a vida!
Uma vez por outra era ele mesmo quem assava as espinhas á lareira.
Abria a barbatana sobre a grelha ou sobre as brasas e ia conversando com alguém que por ali estivesse.
Depois ia desfazendo a posta e pagava num espinha dum lado mais queimado e ia metendo à boca e debicando extraindo imenso paladar e prazer do alimento a da vida!
Quem diria... com tanto prazer da paz e do conforto da lareira e usando tão reduzidos recursos... meia dúzia de gravetos de lenha de poda... uma lareira – sem o mínimo requinte, numa cozinha enfarruscada pela rama de pinheiro e... uma barbatanazita de bacalhau miúdo.
- Viver não custa... o que custa é saber!

Depois da guerra apareceram por aí à venda exemplares do “fiel amigo” tão grandes e bacalhau tão grosso, como nunca... por aqui, se vira.
Postas de bacalhau espectacularmente grosso afogado em azeite, regado à saciedade e comido em abundância… e mal mastigado... dificilmente alguém conseguirá extrair prazer semelhante àquele que meu pai retirava do bacalhau miúdo do tempo da guerra! Debicado com calma, na ponta dos dedos, à pobre lareira?
Ele dizia sempre que tinha que ir a um banquete:
- Se ao levantar da mesa me sinto enfartado, penso para mim: «- Distraí-me, comi demais... estraguei tudo!!!

m. c. santos leite

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